No início de outubro, Zapahzamazki venceu um torneio high roller da série Amber Poker Championship. Diferentemente das etapas anteriores, a transmissão do torneio foi interrompida no meio: Rinat percebeu defeitos nas cartas de espadas e paus ainda durante o jogo, e a troca do baralho não resolveu a situação.

Mesas com transmissão começaram a aparecer no Amber há pouco tempo. Desde as minhas primeiras mesas finais, reparei que algumas cartas eram levemente côncavas. Reclamei algumas vezes — traziam outros baralhos, mas parecia que nada mudava.

Em uma das mesas finais mais caras, identifiquei duas cartas danificadas de baralhos diferentes. As cartas estavam se desfazendo no canto. Ambas eram ases de espadas. A situação foi abafada e, depois disso, não notei mais esse tipo de dano.

Hoje, na mesa final do HR, voltei a notar cartas tortas. Passei a chamá-las de “barquinhos”: curvadas para cima pelo lado do verso, como asas de avião. Brinquei com isso e decidi começar a memorizar as cartas-barquinho que recebia. Já tinha feito isso antes nessas mesas finais, mas nunca encontrei uma lógica — normalmente trapaceiros dobram cartas altas, mas aqui parecia algo aleatório. Memorizei um rei, depois um dez. Talvez cartas altas?

Depois recebi um ás de copas. Ia dar raise, mas percebi a tempo um dano no canto e resolvi foldar por precaução. Outra coincidência? Chamamos o floor e o baralho foi trocado por um completamente novo, com uma cor de verso diferente.

Cartas novas, problemas antigos. Literalmente na segunda mão, recebo um barquinho evidente: dois de espadas. Estranho. Logo depois noto outro barquinho na mão de um oponente. Algumas mãos depois, outro barquinho na minha mão — oito de espadas. Depois, novamente o dois. Em seguida, um all-in na mesa: antes mesmo da mão ser mostrada, percebi um “barquinho” com um dos jogadores envolvidos. Ele mostrou dois valetes: paus e espadas. Ao virar, notei que o valete de paus estava curvado para o lado oposto — também em formato de barquinho, mas invertido. Passei a chamá-lo de “corcunda”.

Lembro das naipes dos barquinhos do baralho anterior: acho que também eram espadas (rei e dez). Digo que suspeito de algum padrão e aponto quais oponentes têm barquinhos.

O dealer abre o flop: duas cartas vermelhas e um nove de paus. O nove está claramente (e de forma não natural) “corcundado”. Falo isso em voz alta. Um dos oponentes diz que também percebeu um padrão. Jogamos mais algumas mãos e, após testar a teoria juntos, decidimos chamar o floor.

Explicamos a situação e fazemos um experimento. Colocam o baralho virado para baixo à nossa frente. Eu escolho aleatoriamente cinco barquinhos e separo. “Agora vem o truque.” Viramos: todas eram espadas. Max escolhe às cegas algumas cartas corcundas — todas paus.

Os floors pedem um intervalo técnico. Conferem os baralhos antigos e abrem novos. Em todos, o mesmo problema. A situação chega a um impasse. A explicação oficial é defeito técnico de fabricação. Não há cartas “sem defeito”. Decide-se continuar com um baralho padrão Fournier, sem transmissão.

Nos comentários, rapidamente ficou claro que defeitos semelhantes já haviam sido observados em outras zonas de jogo:

Em Sochi, aconteceu a mesma coisa com as cartas na primavera.

Havia “barquinhos” de espadas na mesa; o jogador local pediu para trocar o baralho, trouxeram um lacrado — e nele também as cartas de espadas numeradas estavam em formato de barquinho.

Segundo ele, houve algum tipo de falha massiva na produção, e as cartas externas do baralho (espadas) não foram impressas de forma perfeita.

De que tipo de cartas estamos falando?

Nas mesas de TV são usadas cartas especiais: visualmente idênticas às cartas plásticas comuns, mas com chips RFID embutidos. Cada chip possui um código único que identifica o valor e o naipe da carta.

Os jogadores nas mesas de TV são orientados a posicionar suas cartas em um local específico dentro de uma marcação — ali fica o leitor RFID, que identifica o código e o transmite de forma criptografada ao sistema de transmissão. Às vezes, os jogadores posicionam as cartas incorretamente, e por isso a mão não aparece no ar.

Nos anos 2000, câmeras embutidas nas mesas eram usadas para “espiar” as cartas. Entre 2013 e 2015, os organizadores migraram em massa para o RFID, que se tornou o padrão da indústria.

Existem muitos fabricantes desses baralhos:

  • Faded Spade (EUA) fornece cartas para o WPT
  • Cartamundi (Bélgica, EUA) é dona das marcas Copag (usadas na WSOP), Fournier e USPCC
  • Angel (Japão), Modiano (Itália) e outros

Também existem fabricantes genéricos, cujos produtos podem ser comprados no AliExpress e plataformas similares. Sobre os padrões de qualidade adotados por eles, só é possível especular.

A transmissão do torneio em Kaliningrado foi cancelada justamente pela impossibilidade de usar um baralho RFID. Os organizadores migraram para cartas plásticas Fournier sem chips, o que impossibilita a exibição rápida de imagens.

Alexey Li, gerente do clube de poker SOBRANIE (Kaliningrado) e do Amber Poker Championship fez um comunicado:

Começamos a realizar transmissões de TV neste verão. Após algumas séries, nosso jogador frequente Rinat Lyapin notou um defeito nas cartas. Em alguns casos ele era visível imediatamente, em outros quase imperceptível. No mesmo dia, todos os baralhos foram recolhidos para verificação.

A inspeção confirmou a presença de defeitos de diferentes níveis de gravidade, que se intensificam conforme o uso das cartas. Acreditamos que as causas exatas da deformação só podem ser determinadas conhecendo todo o processo de fabricação.

Como resultado, foi tomada a decisão óbvia de encerrar a cooperação com esse fornecedor. Atualmente, estamos buscando um novo fabricante com qualidade adequada para garantir um jogo responsável e seguro. Por isso, no momento, as transmissões do Amber Poker Championship ocorrem com cartas fechadas.

Chamamos atenção para o fato de que estamos falando exclusivamente de cartas com chip, utilizadas apenas nas mesas de TV.

Onde foram identificados os baralhos defeituosos

Rinat identificou o problema com as cartas RFID em séries de poker ao redor do mundo. Nós conferimos: nas transmissões, de fato, às vezes aparecem cartas com curvatura, embora nem sempre seja possível afirmar se isso se deve a características do baralho ou simplesmente ao desgaste natural.

SPF High Roller (julho):

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Rinat: “Aqui dá para ver um contraste claro. A carta mais próxima encosta bem pelos cantos, enquanto a mais distante é claramente um ‘barquinho’.”

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Quem quiser também pode notar a curvatura característica em formato de “barquinho” nas cartas de Oleg Ustinovich (vídeo).

WSOP Bahamas 2024:

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Michael Addamo recebeu duas cartas de copas — ambas curvadas com as bordas para cima (vídeo).

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Duas cartas de espadas — também em formato de “barquinho” (vídeo).

EPT Barcelona 2022:

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O futuro campeão Giuliano Bendinelli recebeu duas cartas de paus; na carta da esquerda, o centro está visivelmente elevado (vídeo).

EuroPokerMillion 2025:

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Com Marius Moldoveanu, tudo segue o padrão: duas cartas de copas — dois “barquinhos”.

Ainda assim, não faltam exemplos contrários que não confirmam a teoria.

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Aqui, com Nikolaus Kovacs, aparentemente deveriam existir dois “barquinhos”, mas apenas um é visível (vídeo).

Danang Poker Tour:

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A deformação das cartas de Alexandre Charron fica especialmente clara no vídeo quando elas são pressionadas contra a mesa, sobre o leitor RFID (vídeo).

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Ngo Khoa Anh recebeu dois setes: em uma carta, o canto fica levantado acima do feltro; na outra, o centro está elevado (vídeo).

Coincidência, fraude ou desgaste?

A curvatura das cartas, por si só, é algo comum no poker ao vivo. Porém, esse tipo de “marcação” não deveria seguir um padrão, já que os jogadores dobram cartas de diferentes naipes e valores com intensidade semelhante. Já os “barquinhos” e “corcundas”, se aceitarmos a teoria de Lyapin, apresentam deformações de acordo com regras específicas:

O grau de curvatura da carta está relacionado ao seu valor.

  • As cartas de espadas (“barquinhos”) — ases, dois e três — são as mais curvadas. Quanto maior o valor, menor a curvatura.
  • As cartas de paus (“corcundas”) se deformam de forma inversa. As mais “corcundas” são reis e damas. Quanto menor o valor, menor a deformação.
  • Outra característica rara: se uma carta estiver descolando no canto, muito provavelmente trata-se de um ás.

O próprio Rinat apresenta quatro possíveis explicações:

As cartas foram marcadas por algum jogador: Dobrar cartas propositalmente é um dos métodos mais antigos de trapaça. Essa hipótese é descartada aqui, pois cartas irregulares aparecem imediatamente após a troca por um baralho totalmente novo.

As cartas foram marcadas no cassino: Caso um cassino quisesse trapacear, teria métodos muito mais sofisticados, como transmitir informações a jogadores “da casa” por meio da direção da transmissão. Marcar cartas de forma perceptível até para um visitante casual seria grosseiro demais.

As cartas foram comprometidas pelo fornecedor durante o transporte a partir da Austrália: A probabilidade é baixa, pois falsificar um baralho desse tipo fora da fábrica é extremamente difícil.

Defeito “pré-fabricado” do produtor: Um baralho semelhante, anos atrás, ajudou Phil Ivey a ganhar milhões no bacará — valores que posteriormente viraram objeto de disputa judicial com o cassino.

Surge, no mínimo, mais uma explicação possível: o defeito ocorreu na fabricação, não por má-fé, mas devido a falhas tecnológicas no processo.

Alexey Li:

Acreditamos que os defeitos possam estar relacionados a diferentes tecnologias de chipagem para alguns naipes e à aplicação da impressão gráfica. Outra possível causa é a violação do processo de embalagem e a pressão desigual sobre as cartas durante o armazenamento e o transporte.

Existe ainda outra hipótese: em alguns clubes ou cassinos, podem estar sendo utilizados baralhos mais baratos, de fornecedores menos renomados.

Muitos baralhos RFID disponíveis no AliExpress são produzidos por uma empresa chinesa de Shenzhen. Rinat encomendou um desses baralhos e constatou que as cartas nele também se deformam seguindo determinados padrões.

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Unboxing e testes do novo baralho

Rinat gravou o unboxing e os testes do novo baralho em seu canal no Telegram. Primeiro, ele mostrou que é possível cortar o baralho usando uma carta de espadas como referência: devido à curvatura, essas cartas criam um pequeno vão na lateral do baralho. Quanto maior a curvatura, mais próximo o valor está do ás de espadas.

Ao abrir um baralho novo, esses vãos não são visíveis, pois as cartas vêm organizadas por naipes e o efeito acaba sendo suavizado. No entanto, basta embaralhar para que “listras” passem a aparecer no corte lateral.

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O teste seguinte foi verificar se um “barquinho” gira com mais intensidade ao ser lançado sobre a mesa com efeito (como os dealers costumam fazer). Se a carta gira bastante, trata-se de uma espada ou de uma carta de copas. No vídeo, há algumas tentativas malsucedidas, mas a maioria das suposições se mostrou correta.

Outros fatores também influenciam a precisão dos palpites: ângulo de visão, iluminação, posição das cartas em relação umas às outras e até a curvatura temporária que surge ao levantar as cartas. Ainda assim, os palpites deixam de ser aleatórios. Excluir determinados naipes e conhecer o valor da carta com pequena margem de erro já garante uma vantagem significativa.

O que pensam os regulares

Segundo Alexey Borovkov, na série brasileira BSOP Millions 2025, no fim de novembro, “todo mundo falava sobre baralhos tortos”, mas os organizadores não conseguiram abrir mão da transmissão de TV. A solução encontrada foi a seguinte: os dealers deveriam distribuir as cartas de forma que elas girassem bastante, enquanto os próprios jogadores ficariam responsáveis por “protegê-las” da visualização.

À primeira vista, parece que resolver o problema das cartas não seria algo tão complicado. Bastaria aos organizadores comprar um novo lote, verificar sua qualidade e mostrar os baralhos aos jogadores antes das mesas finais transmitidas pela TV.

No entanto, Lyapin não é o único regular experiente do poker ao vivo que poderia ter notado esse padrão. Por isso, na comunidade surgiu outra pergunta: quem percebeu o defeito e passou a explorá-lo silenciosamente?

Avr0ra:

Seria interessante identificar quem se aproveitou desse golpe. Em teoria, isso seria possível, já que só funcionava nas mesas de TV.

Mais uma vez me convenço de que o poker ao vivo deveria ser jogado apenas por diversão, e ainda cobrindo as cartas com a mão, como faz Kabrhel. Além dos “espertinhos” que marcam cartas — algo que, nos EUA, entre jogadores mais antigos, chega a ser visto como parte da habilidade no poker —, aqui você ainda é “aquecido” preventivamente pelo próprio fabricante do baralho.

Inner:

Tenho quase certeza de que houve jogadores observadores que exploraram isso ao máximo (o próprio Kabrhel vem à mente — lembrem-se do escândalo em que ele tentava descaradamente espiar as cartas dos adversários dizendo que estava contando fichas).

Pelo que entendo, dificilmente isso se enquadra como fraude, no máximo daria para falar em conduta antiética por parte de quem se aproveitou da situação. Ainda assim, seria bom que a comunidade conhecesse seus “heróis”.

A repercussão chamou a atenção de outros regulares atentos para o problema dos “barquinhos e corcundas”. Mikhail Potemkin, conhecido como BlackStack94, revisitou sua própria mesa final do WPT na Tailândia e também encontrou muitos “barquinhos”.

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Trecho do relato de Mikhail:

O que parecia simples coincidência acabou se mostrando um padrão. Eu ainda não vejo a representação gráfica da mão do jogador, mas já sei se há uma espada ali. Em 10–15 testes, errei apenas uma vez!

Problemas com transmissões de TV no Brasil, Rússia e Armênia

No fim de novembro, a onda de suspeitas chegou ao Brasil, à série BSOP Millions 2025. Sob os holofotes esteve Martin Kabrhel, que há anos é acusado de extrair vantagens questionáveis das situações de jogo.

O torneio de R$ 500.000 (cerca de US$ 100.000) foi interrompido após regulares locais suspeitarem que Kabrhel estivesse utilizando marcação de cartas.

Os organizadores trocaram o baralho por outro semelhante.

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Martin continuou cobrindo ativamente suas cartas com a mão. Por causa disso, elas deixavam de ser lidas pelo equipamento com frequência e não apareciam na transmissão.

Em deep runs nessa série, também se destacaram Daria Krashennikova e Vladimir Minko. Nas transmissões, é visível que ambos tentam proteger suas cartas da visualização.

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Em dezembro, organizadores ao redor do mundo começaram a reagir ao problema:

  • 7 de dezembro: a transmissão do Kaliningrad Cup APC 39 foi realizada com cartas fechadas.
  • 8 de dezembro: o Russian Poker Tour anunciou o cancelamento de todas as transmissões de TV da Grande Final do RPT Minsk.

Erik Shahbazyan, organizador do Russian Poker Tour:

A empresa que fornece o equipamento de TV é australiana, e é dela que compramos as cartas RFID (que não são nada baratas). Pegamos um novo lote, abrimos sob as câmeras e vimos que havia problemas. Gravamos um vídeo e enviamos ao fornecedor — que agora precisa resolver isso com o fabricante. Está claro que se trata de algum defeito.

Nessas condições, quando não é possível ter 100% de certeza sobre a lisura do jogo, decidimos cancelar a transmissão.

Baralhos problemáticos também foram identificados nas séries mais prestigiadas que encerraram 2025 — Triton Poker e WSOP Paradise, nas Bahamas. Por exemplo, “barquinhos” e “corcundas” foram notados por Damir miracleQ Gabdullin.

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Damir comentou: “Adivinhem onde estão o ás e o rei de espadas.”

Durante a série, a qualidade das cartas também passou a preocupar Artur Martirosyan. Segundo ele, os organizadores garantiram que as cartas eram de alta qualidade, todas iguais, alisadas e verificadas na fábrica, e que qualquer defeito só poderia ser causado pelos próprios jogadores.

No entanto, no dia seguinte, Artur afirmou que os baralhos continuavam problemáticos:

Estou conduzindo minha própria investigação no local, junto com o diretor do torneio. Ontem ele me disse que estava tudo certo, mas hoje as cartas ainda apresentavam defeitos. Consegui adivinhar muitas cartas.

Começamos a testar várias teorias, inclusive comparando cartas recém-saídas da caixa e cartas já usadas por algum tempo. Há certos padrões.

O diretor não pode fazer nada agora, porque não há de onde tirar novos baralhos. A única decisão foi pedir que todos cubram bem as cartas com a mão.

As cartas não são tão problemáticas quanto Rinat descreveu. Elas são relativamente boas, pois são alisadas e mantidas sob pressão. Por isso, no início ficam bem planas, mas com o tempo voltam à forma original e defeitos semelhantes aparecem. Os padrões são um pouco diferentes, mas existem. Quando descobrirmos exatamente quais cartas são, eu aviso.

Para não precisar manter as mãos sobre as cartas o tempo todo, jogadores que chegam às mesas de TV acabam improvisando: colocam fichas sobre as cartas, cartões de time bank ou utilizam card protectors maiores e mais pesados.

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Os organizadores do Belarus Poker Tour confirmaram que também estão cientes do problema com cartas chipadas, mas afirmaram que, em suas transmissões, utilizam baralhos de outro fabricante — sem defeitos e várias vezes mais caros:

Temos muitos baralhos para transmissões de TV: três principais e cinco ou seis reservas, todos novos. Antes das transmissões, verificamos visualmente as cartas e também o funcionamento da leitura nos boxes dos jogadores. Utilizamos baralhos desse fabricante há mais de sete anos e, nesse período, não houve problemas sérios — apenas casos pontuais de descolamento ou falha na leitura de alguma carta, resolvidos em segundos. Um baralho reserva sempre fica a dois metros do dealer.