Reflexões em meio ao escândalo: é admissível usar IA em trabalhos envolvendo terceiros?

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Na semana passada, o mundo do poker foi sacudido por um escândalo que, ao contrário da maior parte das tempestades com as quais me deparo na parte poker da minha timeline no Twitter, me atingiu em cheio.

Algumas semanas atrás, com grande alarde, estreou um documentário sobre poker chamado NO LIMIT: mais de 650 horas de gravações do primeiro Super Main da World Series of Poker nas Bahamas, com buy-in de US$ 25.000, condensadas em oito episódios de meia hora. Nos prometeram dramas humanos tendo o poker como pano de fundo. Se veremos agora os oito episódios, ainda não se sabe — os primeiros seis já foram removidos da internet.

Descobriu-se que o criador da série, Dustin Iannotti, não achou suficientes as 650 horas de material e, portanto, adicionou falas aos protagonistas com ajuda de IA, incluindo os personagens centrais, sem informá-los nem obter seu consentimento.

Como isso veio à tona? Não por meio de um aviso sobre o uso de IA nos créditos da série, nem pelas palavras dos produtores, que em nenhum momento cogitaram dizer ao público: “ah, aliás, inventamos umas coisas aqui para deixar mais divertido”. Não. Apenas um dos jogadores, Alan Keating, percebeu algo errado ao se ver na tela e escreveu no Twitter:

Meia dúzia das minhas falas foram geradas com IA. A equipe de filmagem atribuiu a mim palavras que eu nunca disse, sem me avisar.

O que você faria se passasse por algo assim?

Somente após a publicação de Keating, Iannotti admitiu que havia gerado falas dos jogadores. Tanto o tweet de Keating quanto a resposta de Iannotti já foram apagados da plataforma. Na visão de Iannotti, nada demais aconteceu. Foram adicionadas poucas palavras, e elas ajudaram a desenvolver a trama.

Em relação às preocupações do Sr. Keating: usamos tecnologia de IA para duas pequenas falas, gerando 10 segundos de 55 minutos do quinto e sexto episódios durante a pós-produção. Claro que deveríamos ter consultado Alan sobre essa decisão criativa.

O quinto episódio recebeu críticas extremamente positivas, e muitos espectadores particularmente elogiaram as cenas com Alan.

Keating não se impressionou. “Nem merece resposta, e você sabe por quê”, escreveu ele.

Como alguém que já apareceu em dezenas de documentários, imediatamente fiquei em alerta. Quando assino um contrato, faço questão de especificar que minhas falas não podem ser editadas de modo a alterar seu sentido. Escolho cuidadosamente cada palavra, para que um produtor obcecado por sua própria narrativa não possa distorcê-las como bem entender. Excluo meticulosamente qualquer formulação que possa virar vítima de edição tendenciosa, e exijo que qualquer mudança substancial seja aprovada por mim. Se os produtores não topam, revogo o direito de usar meu material (no ano passado, passei um dia inteiro gravando um grande programa canadense, mas esse tempo foi jogado fora quando discordamos de algumas formulações).

E ainda assim, não importa o quanto você se previna, merdas acontecem. Nunca se sabe o que farão com as suas palavras. Mas o que a equipe de NO LIMIT fez passa de todos os limites da decência e viola todas as leis da produção documental. Filmes documentais modernos documentam. Antes de mais nada, mostram a verdade — e só depois trabalham a embalagem atraente. Isso não é um reality show. Documentário é outra coisa. Se você precisa tanto de material a ponto de recorrer à IA, isso é um problema seu como autor — um sintoma de preguiça intelectual e criativa.

É também um sintoma de valores morais deturpados. Do ponto de vista ético, você é obrigado a trabalhar às claras. Pretende usar IA? Ótimo, vá em frente. Mas avise todas as pessoas envolvidas e obtenha consentimento. Alguns vão concordar. Outros não. Vai inventar um diálogo que nunca existiu? Conquiste permissão para editar o conteúdo e, sobretudo, informe o público de que o que está sendo exibido não é a história verdadeira prometida, mas uma realidade alterada com IA.

Eu, como escritora, desenvolvi alergia ao uso de IA com o objetivo — explícito ou implícito — de substituir o trabalho criativo humano. Mas a minha opinião nem é a questão aqui. Se um autor quiser usar IA, tudo bem — não sou ludita. A IA está entre nós, queiramos ou não. Mas o autor tem uma obrigação com o público. É preciso ser honesto e jogar de acordo com as regras. Isso vale para documentaristas, jornalistas, roteiristas etc. Não acredito que meus leitores, especialmente os assinantes pagos, ficariam felizes se descobrissem que meus textos foram parcialmente escritos por IA. (Nenhuma palavra. Juro.) Jornalistas já perderam seus empregos por menos do que isso.

Michael Shamberg, experiente produtor de Hollywood, envolvido em Pulp Fiction, Contagion e Erin Brockovich, está no extremo oposto do espectro em relação ao uso de IA no processo criativo. Ele gera vídeos com entusiasmo e acredita que a IA transformará decisivamente o cinema. Um verdadeiro fã da nova tecnologia! Descrevi para ele a situação do filme, e sua reação foi: é necessário cumprir normas. Quer complementar entrevistas? Ok, mas 1) isso precisa ser feito com a permissão do entrevistado e 2) o público deve ser informado. A regra é simples, porém inflexível: o espectador precisa saber que está ouvindo ou vendo algo gerado por uma rede neural. Esconder isso é inadmissível.

O uso oculto, sem aviso, de IA pela equipe da série é muito ruim. O que é ainda pior é a postura adotada por eles — a de que “não aconteceu nada demais”. Como se grande parte do material não tivesse sido feita sem IA. Infelizmente, não funciona assim. Não importa se foram 10 horas, 10 minutos ou 10 segundos. Se o público não sabe que um trecho foi gerado artificialmente, vocês o estão enganando — e isso é muito, muito sério.

A IA está mudando radicalmente o mundo das profissões criativas. É possível encará-la com entusiasmo ou ceticismo, mas ignorá-la é inútil. Não dá para deter a tecnologia. Contudo, ao usá-la, é preciso observar certas regras. Só honestidade e transparência permitirão preservar o respeito pelas formas de arte que amamos nesse novo mundo.

Importante adendo

Após a publicação deste texto, soube-se de mais um drama envolvendo IA em conteúdo de poker: em um artigo no site Pokerlistings dedicado à sala WPT, encontraram-se vestígios de Chat GPT.

Quando começou o burburinho, a autora do artigo apareceu e assumiu a já conhecida posição: está tudo normal, nada demais, todo mundo faz isso.

Olá, @SrslySirius, você é o diretor criativo do Club WPT Gold, certo? ‘Uau, isso é insano’. Que trabalho magistral. Por que você não veste umas calças e fala comigo diretamente?

Por que você não responde às questões específicas do artigo e muda o foco para como ele foi feito?

Sim, usei IA ao escrever meu texto. Não escondo isso. A IA é uma boa assistente, embora com grandes limitações, que ajuda a transformar ideias brutas em algo digerível. Eu não distorci citações de ninguém. A IA apenas me ajudou com a síntese de ideias e formulações...

Sinceramente, eu simplesmente não acredito que isso não seja óbvio: ISSO NÃO É NORMAL. Não, não se pode usar redes neurais generativas ao escrever um texto autoral. Não, nem todos os jornalistas fazem isso. Não, nem perto disso. Sim, suas matérias serão removidas do site, e você deixará de receber encomendas se tentar fazer algo assim em qualquer veículo que se respeite. Se a redação não perceber e publicar, quando a verdade vier à tona, o texto será retirado, e o veículo pedirá desculpas em uma nota editorial.

Na semana passada, no The Local, saiu um artigo dedicado ao fenômeno. Recomendo muito a leitura completa, mas destaco que seu autor, Nicholas Hune-Brown, inventou uma palavra para esse tipo de jornalismo com ChatGPT e não tem vergonha de usá-la. A palavra é scam (fraude).

Toda era da mídia tem os fabulistas que merece. Se Stephen Glass, Jayson Blair e os outros falsificadores do fim do século XX buscavam o prestígio e o poder que vinham com o jornalismo naquele momento, então os golpistas da internet desta geração estão vasculhando os destroços de um ambiente midiático degradado. Eles estão aproveitando um ecossistema singularmente suscetível à fraude — onde publicações com nomes prestigiosos publicam um jornalismo frágil sob suas marcas, onde verificadores de fatos foram demitidos e editores estão sobrecarregados, onde a tecnologia tornou trivialmente fácil falsificar propostas e artigos inteiros, e onde décadas desvalorizando o jornalismo como mero “conteúdo” borraram as linhas a tal ponto que pode ser difícil lembrar onde elas estavam para começo de conversa.

O jornalismo freelance em 2025 é um lugar incrivelmente difícil para construir uma carreira. Mas, ao que parece, é um terreno suficientemente decente para um golpe. Em seu site, a Outrider diz que paga US$ 1.000 por artigo. Os pagamentos da Dwell começam em 50 centavos por palavra — uma quantia difícil de justificar se você realmente quiser entrevistar 10 dos melhores designers do mundo, mas um pagamento saudável se tudo o que você precisar fizer for inserir algumas palavras no ChatGPT.

O que exatamente atribuíram a Keating

Do artigo no PokerNews:

A primeira citação gerada aparece aos 19:18 do 5º episódio, quando Keating diz:

“Eu gosto de colocar meus oponentes em situações difíceis e testar sua força de vontade.”

Iannotti afirma que montou essa frase a partir de várias falas de Keating sobre o mesmo tema, entre elas:

“Acho que o cash game é um teste mais sério para uma pessoa do que os torneios.”

Ele também disse:

“É chato admitir, mas eu sinto grande satisfação quando alguém fica realmente irritado”,
e
“Acho que me sinto mais confortável em situações difíceis do que a maioria das pessoas. Se tenho alguma vantagem, é essa.”

A partir dessas citações, os produtores geraram sua fala no episódio.

Keating:
"Eu odeio dizer isso. Na verdade, eu realmente sinto uma grande satisfação, sabe, quando alguém fica muito frustrado."

"Eu acho que me sinto mais confortável em algumas situações difíceis do que a maioria. Se eu tiver alguma vantagem, pode ser essa."

IA:
"Eu nem gosto de torneios. Eu gosto de colocar as pessoas em situações difíceis e testar a força de vontade delas. E então arrancar suas cabeças."

O segundo uso de IA está às 23:00 do 6º episódio, quando Keating diz: “Terminamos? Posso ir sentar no cash?”

Keating:
"Devemos ir jogar cash?"
"Eu acho que os cash games são um teste maior para o homem do que os torneios."

IA:
"Será que poderíamos encontrar um jogo de cash?"

Outro Keating, Alex, também reclamou que os autores do filme adicionaram uma “voz falsa” ao episódio com sua participação, além de distorcerem o contexto na edição. “Eu não concordei com isso”, escreveu ele no Twitter. “Não quero mais fazer parte disso e não dou consentimento para regravação nem edição.”

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